Do dever da Administração Pública efetuar o pagamento de contratos verbais – análise da Nova Lei de Licitações (14.133/2021)

Do dever da Administração Pública efetuar o pagamento de contratos verbais – análise da Nova Lei de Licitações (14.133/2021)
1 ano atrás

Quais tipos de contratos verbais são válidos quando uma das partes é a administração pública? Há diferença para gerir estas situações entre a antiga e a nova lei de licitações? Essas e mais dúvidas você esclarece agora.

LICITAÇÕESCOMPRAS

Antônio augusto Reis e Reis

11/14/2022 | 6 min de leitura

Com a finalidade de balizar a condução de compras e contratações de serviços pelos administradores, o legislador buscou a criação de um regramento que atendesse, sobretudo, o interesse público, tornando possível que administrador o reconheça diante da leitura arrimada dos princípios constitucionais da legalidade, moralidade e impessoalidade dispostos no art. 37, caput da Constituição Federal de 1988.

Assim sendo, com a finalidade descrita, foi elaborada a Lei de n.º 8.666/93, conhecida como Estatuto de Licitações, para diminuir a atuação demasiada e inconsequente do administrador público que, mais do que tudo, tem o dever intrínseco de agir em probidade com o erário.

Vale mencionar que esses preceitos foram recepcionados e até mesmo replicados pela Nova Lei de Licitações, a Lei de n.º 14.133/2021 (JUSTEN FILHO, 2022)

Nesse sentido, o imperativo legal de declaração de nulidade de contrato verbal com a administração, ressalvadas as hipóteses previstas, estão presentes em ambas as legislações, conforme visto com a leitura do parágrafo único do art. 60 da Lei de n.º 8.666/93, e seu dispositivo equivalente na nova lei de licitações, de n.º 14.133/21, no §2º do art. 95, nestas palavras:

Art.60. […] Parágrafo único. É nulo e de nenhum efeito o contrato verbal com a Administração, salvo o de pequenas compras de pronto pagamento, assim entendidas aquelas de valor não superior a 5% (cinco por cento) do limite estabelecido no art. 23, inciso II, alínea “a” desta Lei, feitas em regime de adiantamento.

Art. 95. […] § 2º É nulo e de nenhum efeito o contrato verbal com a Administração, salvo o de pequenas compras ou o de prestação de serviços de pronto pagamento, assim entendidos aqueles de valor não superior a R$ 10.000,00 (dez mil reais).

Como visto, tendo por nulo e sem nenhum efeito o contrato realizado de maneira verbal com a Administração Pública, seria plenamente possível, mas, não válida, a situação na qual o administrador denegue o pagamento da quantia avençada oralmente com o contratado, sustentando que, diante da patente nulidade, não seria cabível o pagamento, sob pena de ser responsabilizado, devendo, portanto, anular o ato.

De fato, a Administração tem o dever de anular os próprios atos quando eivados de vícios de legalidade, principalmente aqueles que importam em ilegalidade capaz de causar dano ao erário, sendo tal imposição corolário do princípio da autotutela[1]. Sobre isso explica o ilustre professor:

A Administração Pública comete equívocos no exercício de sua atividade, o que não nem um pouco estranhável em vista das múltiplas tarefas a seu cargo. Defrontando-se com esses erros, no entanto, pode ela mesma revê-los para restaurar a situação de regularidade. Não se tratando apenas de uma faculdade, mas também de um dever, pois que não se pode admitir que, diante de situações irregulares, permaneça inerte e desinteressada. Na verdade, só restaurando a situação de regularidade é que a Administração observa o princípio da legalidade, do qual a autotutela é um dos mais importantes corolários (CARVALHO FILHO, 2020. p.37).

Entretanto, mesmo frente ao dever-poder mencionado, seria inconcebível que o administrador se recusasse a efetuar o pagamento do valor avençado, utilizando-se, para tanto, do argumento da nulidade contratual. O não pagamento, neste sentido, ensejaria enriquecimento ilícito da própria Administração, a qual optou por não formalizar a contratação à luz dos requisitos legais e solenes que regem as relações do Direito Público.

Ademais, a legalidade deve ser, ainda, balizada pela razoabilidade e proporcionalidade. Significa dizer que os atos administrativos não só devem ser aqueles adequados para que seja possível alcançar os fins desejados pela Administração, mas, também, devem ser coerentes.

A coerência guarda relação com a proporcionalidade e deve ser medida pelos padrões comuns da sociedade, frente ao caso concreto, não apenas diante dos “termos frios da lei” (DI PIETRO, 2019, p. 238).

Diante desse conflito, deverá prevalecer o contrato firmado a fim de evitar o locupletamento ilícito da Administração, ainda que a contratação tenha sido formalizada oralmente e fora das hipóteses previstas. Ao menos é o que leciona o Superior Tribunal de Justiça, cujo colegiado assentou os seguintes entendimentos:

ADMINISTRATIVO. CONTRATO ADMINISTRATIVO. FORMA VERBAL. NÃO-PAGAMENTO. COBRANÇA JUDICIAL. PRINCÍPIO DO NÃO ENRIQUECIMENTO ILÍCITO. PAGAMENTO DEVIDO. 1. De acordo com o art. 60, p. ún., da Lei n. 8.666/93, a Administração Pública direta e indireta, via de regra, está proibida de efetuar contratos verbais. Nada obstante, o Tribunal a quo constatou que houve a entrega da mercadoria contratada pelo ente federativo (fls. 201/202). 2. Se o Poder Público, embora obrigado a contratar formalmente, opta por não fazê-lo, não pode, agora, valer-se de disposição legal que prestigia a nulidade do contrato verbal, porque isso configuraria uma tentativa de se valer da própria torpeza, comportamento vedado pelo ordenamento jurídico por conta do prestígio da boa-fé objetiva (orientadora também da Administração Pública). 3. Por isso, na ausência de contrato formal entre as partes – e, portanto, de ato jurídico perfeito que preservaria a aplicação da lei à celebração do instrumento -, deve prevalecer o princípio do não enriquecimento ilícito. Se o acórdão recorrido confirma a execução do contrato e a realização da obra pelo recorrido, entendo que deve ser realizado o pagamento devido pelo recorrente. 4. Inclusive, neste sentido, é de se observar que mesmo eventual declaração de nulidade do contrato firmado não seria capaz de excluir a indenização devida, a teor do que dispõe o art. 59 da Lei n. 8.666/93. 5. Recurso especial não provido REsp 1.111.083/GO, 2ª T., rel. Min. Mauro Campbell Marques. J. em 26.11.2013. DJe de 06.12.2013.

PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. ADMINISTRATIVO. AÇÃO DE COBRANÇA. SERVIÇOS EFETIVAMENTE PRESTADOS À SOCIEDADE DE ECONOMIA MISTA. LOCUPLETAMENTO INDEVIDO À ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. O enriquecimento ilícito é vício social no qual incide a Administração Pública nas hipóteses em que, a pretexto da inexistência de continuação de vínculo formal, persiste no recebimento dos serviços, excluindo de pagá-los alegando a própria torpeza. Recurso especial desprovido, mantendo-se a sentença calçada em perícia, divergindo-se do E. Relatos. REsp. 1.096.917/PE, 1ªT. Rel. Min. Luiz Fux. J. em 26.05.2009. DJe de 09.10.2009.

Conforme demonstrado, a existência do contrato verbal realizado entre a Administração Pública e o particular fere frontalmente o princípio da legalidade. É dever do administrador, portanto, anular o ato, de modo a exercer a autotutela administrativa preconizada na Súmula 473 do Supremo Tribunal Federal.

Relembra-se que o contrato verbal realizado entre a Administração e o Particular é possível e plenamente válido nos casos da contratação de serviços descritos no art.60, p. único, no âmbito da Lei de n.º 8.666/93 e de compras e serviços com valor adequado ao disposto no art. 95, §2º, da Lei de n.º 14.133/2021.

No entanto, ainda que firmado contrato verbal fora das hipóteses previstas na legislação, deverá prevalecer o princípio do não enriquecimento ilícito, portanto, o pagamento deverá ser realizado.

Assim, conclui-se que, embora as relações entre Público e Privado sejam regidas, sobretudo, pelo princípio da legalidade, os contratos verbais realizados em desconformidade com a legislação devem ser pagos – por óbvio, desde que a obra, serviço ou compra tenham sido cumpridos. Para além do não enriquecimento ilícito, os princípios da razoabilidade e proporcionalidade devem, também, estar presentes na discussão.

[1] O STF, inclusive, publicou súmula tratando do caso, a Súmula 473: “A administração pode anular seus próprios atos quando eivados de vícios que os tornem ilegais, porque deles não se originam direitos; ou revogá-los, por motivo de conveniência ou oportunidade, respeitados os direitos adquiridos, e ressalvada, em todos os casos, a apreciação judicial”.

Referências bibliográficas:

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Súmula n.º 473. Tese definida no RE 594.296, rel. min. Dias Toffoli, P, j. 21-9-2011, DJE 146 de 13-2-2012, Tema 138

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp. 1.096.917/PE, 1ªT. Rel. Min. Luiz Fux. J. em 26.05.2009. DJe de 09.10.2009.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp. 1.111.083/GO (2008/0113350-4). Rel. Min. Mauro Campbell Marques. J. em 26.11.2013. DJe de 06.12.2013.

CARVALHO FILHO, José dos Santos. Curso de direito administrativo. 34.ed. São Paulo: Atlas, 2020.

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. – 32. Ed. – Rio de Janeiro: Forense, 2019.

JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à lei de licitações e contratos administrativos: lei 14.133/2021. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2022.

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